Incandescência



Meu amor é livre: Liberto, sem rumo e sempre no plural. Meu amor se estende aquelas entrelinhas de textos subjetivos, de ideias paliativas e sábados à noite em meio a cervejas e vendavais. Meu amor é livre e intersecional, anárquico, reflexivo e nele não cabe opressões e especismo machista. Meu amor caminha pela Augusta, passa a madrugada na rua esperando alguma coisa, senta na calçada e se não vir alguém pode respirar e sentir o ar doce e úmido da solidão. Meu amor não perde tempo tentando impressionar com "mentiras sinceras" ou com "gentilezas", porque ele é bruto, sincero e mal falado. Mal falado porque não mente e nem dissimula, não tem essa necessidade. O que será o amor se não for compartilhado com outro amor? Meu amor anárquico não vê gêneros, órgãos genitais ou a quantidade de gordura. Existem coisas muito mais importantes que sua ótica verde e o tamanho do seu jeans.
Meu amor respeita o espaço e entende as ideias ocultas nos livros do Kundera. Se sente Thomas à noite, pois seu sono com poucos fora compartilhado. Meu amor observa o movimento alheio e a dor que se confunde com prazer. Julgam meu amor por ser tão livre, mas o que será o amor além de livre? 


Meu coração bate mais forte que o teu
e minha verdade é mais verdadeira que a tua
os ritmos paliativos das nossas almas não são mais compatíveis
porque a linha tênue que separa minha vontade da tua
rompeu.

agora nós vivemos nesse mundo
cheio de mimimis, blablablás
e conversas sem nenhum propósito nas mesas de bar.

mas meu argumento é mais extenso que o teu
e minha cara intelectual é mais convincente que a tua
então meus motivos para protestar são melhores que os teus
e minha merda é mais cheirosa que a tua.

aprendi em algum lugar que minhas verdades absolutas podem ser mentiras condicionadas
e que sua ideologia pode ser mais humana que a minha
por mais que pareça compreensível levar em conta a sociedade humana estratificada
meu coração sempre bate mais forte que o teu
e minha verdade é sempre mais verdadeira que a tua.

Para uma louca donzela que se chama Ana Cristina



*"Tu queres sono: despe-te dos ruídos, e
dos restos do dia, tira da tua boca
o punhal e o trânsito, sombras de

teus gritos, e roupas, choros, cordas e

também as faces que assomam sobre a
tua sonora forma de dar, e os outros corpos
que se deitam e se pisam, e as moscas
que sobrevoam o cadáver do teu pai, e a dor (não ouças)
que se prepara para carpir tua vigília, e os cantos que
esqueceram teus braços e tantos movimentos
que perdem teus silêncios, e os ventos altos
que não dormem, que te olham da janela
e em tua porta penetram como loucos
pois nada te abandona nem tu ao sono."



Nós escrevíamos porque acreditávamos, no fundo, na força da palavra que tinha o poder de mudar o mundo - ou só mais um dia qualquer na existência de um qualquer na terra. As palavras doces e escassas refletiam sobre a brisa da manhã paulista, entre sonhos e pertubações matinais em meio a um café e outro cigarro que de tão habituais haviam perdido seu gosto especial. Enquanto isso te escrevo, Ana, como um mantra angelical que roda os dedos das mãos fazendo-me pensar em sentenças pouco poéticas. Livros com o teu nome na estante, algumas fotos sobre a cabeceira, espero que tu não acha um tanto invasivo minha pré disposição para dizer  das coisas sutis até as mais fúnebres.

Sonhei com teus cachos nessa madrugada em meio a pesadelos habituais, tomávamos um chá e discutíamos alguma coisa daquelas bem simples, como algum filme bobo e nonsense do Woody Allen. Não sei onde você estaria ou o que tivesse feito, mas lembro desse sorriso que invadia quaisquer discussões. Hoje me disseram sobre meu timbre de voz parecer com o teu, talvez seja real. Dizem que herdamos características físicas daqueles que amamos e poucas coisas fazem menos sentido que essa teoria, na verdade. Mas te escrevo, aqui, para dizer o que não posso dizer-te em um dia frio entre um chá e bolachas de cereais. Gostaria que você soubesse que meu coração bate forte e triste todas as vezes que vou em sétimos andares porque penso que eles, só eles, são os verdadeiros vilões.

E todas as vezes que entro paro e olho os dois quartos vazios, penso nas coisas que ficaram ali estagnadas em cada canto coberto pelo concreto e azulejos. Não existem mais máquinas, mais ócio ou conversas infernais. O quartos vazios me tornam mais próxima e, consecutivamente, cada vez mais dentro de ti.

Recito sozinha em meio essa esfera sem fim: Se isso é amor, que arranque cada fio de sanidade e construa teias ilesas entre os parâmetros da loucura.  

*Poema da Ana C. 

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Volto pra casa e observo o modo sutil com que as coisas, ignorando a probabilidade, permaneceram ilesas. O gato se esconde no meio de todos os cobertores e se mantem confortável, em suma, não estava acostumado com esse lugar. Lembro que no caminho até aqui por cada rua que passava sentia pequenos reflexos da infância se esvaindo, sórdido, pelo asfalto recém posto. Pela praça haviam as mesmas pessoas com suas garrafas de vinhos baratos e seus cigarros acesos, antes das 18h. O sol fustigava a mentalidade poética, por alguns instantes pensei que seria muitíssimo mais licencioso caso chovesse ou fizesse frio.

Passaram-se 10 anos, dentre as procrastinações, mas em cima da máquina de escrever eu pude ver aquela mancha que havia deixado do café antes de ir embora, agora coberta com uma poeira. Não pude levar os livros pois a viagem era longe e havia limite para as bagagens, achei que morreria sem eles – pois, qualquer um que me conhecesse naquela época saberia que eles eram uma parte de mim -, mas consegui sobreviver recomprando-os quando necessário e esquecendo todos aqueles fascículos de bandas de post-punk. Doía voltar, ver os quartos vazios após a morte dela. Haviam cachorros novos, o glitter da parede estava gasto e um cheiro áspero rondava no local, se fosse naquela época diria que é uma energia ruim, mas hoje não faz mais sentido. Pego um livro com fotos deles, os que eram mais importantes na época. Esses sorrisos juvenis energizando uma alegria esperançosa quase triste ocuparam nossos rostos por anos até serem devorados pelo fantasma da vida adulta.   

O tempo passou e ela manteve intacto o gosto da despedida, como se eu pudesse voltar e acender de novo aquele incenso que ficou pela metade preso no disco na parede, como se pudesse novamente disfarçar que aquele cheiro de cigarro impregnado na roupa era só mais um cheiro. Doía, bem no fundo, repensar nas esperanças que se perderam no meio do ciclo suntuoso vivencial realístico. A cor que não era tão presente aparecia às vezes anualmente para dizer porque sua simbologia era tão importante e as coisas mais comuns tornaram-se hábitos. Esse exemplar de Morangos Mofados, aos 14 anos jurei que nunca me separaria dele. Está autografado, fazia eu me sentir mais viva. Uma caixa debaixo da cama com coisas de amores passados, o gosto doce da ingenuidade.

“Te escrevo esse poema de fim de tarde para dizer o que minha mente caduca escreve nas paredes.”

Já fomos tão interessantes quando éramos menos sórdidos. O toca-discos continuava no lugar, era pesado demais para levar por correio. Coloco pra tocar meu disco preferido da época, Patti Smith grita e eu procuro o gato que se localiza, ainda, entre os cobertores que nunca foram dobrados. Esse cheiro de morte gela os dedos das mãos, apesar do frio. 

Coloco algumas coisas em caixas, fecho-as. Quero guarda-las para sempre. As outras eu deixo para alguém rir no futuro, pego o gato no colo, olho do quintal os dois quartos vazios e a lágrima que quis cair guardo pra mais tarde, quando estiverem alinhadas as razões com os pensamentos.

Acendo o primeiro cigarro dentro de casa, o último incenso cai no chão e o cheiro de morte persegue.
Prometo nunca mais voltar,
os pés estão gastos e o coração palpita de cansaço.            
A guerra está lá fora, as ruas com a iluminação febril, bombas caem pelo chão e você pega minha mão para correr do alastre, da polícia, da miséria, da solidão. Em um bar, tomando cerveja barata, falo sobre minha insensibilidade romântica entre um cigarro ou outro. Falo do quanto o amor que algumas pessoas sentem por mim machuca cada um dos meus nervos e me faz pensar que sou um monstro de carne, osso, seios pequenos e redondos. Na terapia eu confesso o que deveria ter lhe dito há meses e me calo: Toda minha insensibilidade é equilibrada por uma paixão platônica e angustiante pelo modo que você sorri pelos olhos e pelo coração. As bombas não param, o peito palpita. Enquanto seguro sua mão parece que o mundo para na inércia do tempo que fustiga minha mente e me faz tentar, sem sucesso, imaginar o que passa na nos seus pensamentos.
Estava bêbada, eu juro, quando escrevi um pedaço daquela música ridícula que tem seu nome na parede da república. Insana, lúdica. Os dizeres eram sinceros, entretanto.


Eu te amo mais que as bombas que caem pelo céu, as balas que invadem meu peito doem menos que o que resta em cada semblante da manhã paulista que cerra seus olhos, seus cílios, seu sorriso.       




Não era verdadeiro, pois quando via as fotos antigas, não restava saudade. Escrevo um bilhete na máquina de escrever com frases desconexas de filmes do Tarantino, acendo um baseado que tem seu nome, desenho sua face em um guardanapo naquele bar que, pela primeira vez, dividimos um sorriso e meio refrigerante tão gelado quanto meus dedos no verdadeiro instante que tocaran os seus. Atravesso a rua sozinha, dessa vez, não existe mais sua presença para me puxar pela mochila e me proteger dos carros que correm feito loucos na frente da estação. Seu ônibus acabou de passar, tenho a impressão de te ver de longe na janela, seu rosto ocupa as formas geométricas da fumaça daquele baseado que nomeei com o seu nome, você detestaria isso, detestava o cheiro que ficava em minhas mãos. Te deixo uma mensagem na caixa postal, ligo a cobrar de um orelhão. No poste existe um cartaz que diz: "Trago seu amor em 3 dias" eu olho por alguns segundos e digo bem baixinho: "Meu amor está tão longe, tão longe, que precisaria de mais de uma semana." Pego o trem em direção ao futuro, Deus dará. Um dia te mando um cartão postal do sul, molhado de neve, cheio de amor.