Volto pra casa e observo o modo sutil com que as coisas,
ignorando a probabilidade, permaneceram ilesas. O gato se esconde no meio de todos
os cobertores e se mantem confortável, em suma, não estava acostumado com esse
lugar. Lembro que no caminho até aqui por cada rua que passava sentia pequenos
reflexos da infância se esvaindo, sórdido, pelo asfalto recém posto. Pela praça
haviam as mesmas pessoas com suas garrafas de vinhos baratos e seus cigarros
acesos, antes das 18h. O sol fustigava a mentalidade poética, por alguns instantes
pensei que seria muitíssimo mais licencioso caso chovesse ou fizesse frio.
Passaram-se 10 anos, dentre as procrastinações, mas em cima
da máquina de escrever eu pude ver aquela mancha que havia deixado do café
antes de ir embora, agora coberta com uma poeira. Não pude levar os livros pois
a viagem era longe e havia limite para as bagagens, achei que morreria sem eles
– pois, qualquer um que me conhecesse naquela época saberia que eles eram uma
parte de mim -, mas consegui sobreviver recomprando-os quando necessário e
esquecendo todos aqueles fascículos de bandas de post-punk. Doía voltar, ver os
quartos vazios após a morte dela. Haviam cachorros novos, o glitter da parede
estava gasto e um cheiro áspero rondava no local, se fosse naquela época diria
que é uma energia ruim, mas hoje não faz mais sentido. Pego um livro com fotos
deles, os que eram mais importantes na época. Esses sorrisos juvenis energizando
uma alegria esperançosa quase triste ocuparam nossos rostos por anos até serem
devorados pelo fantasma da vida adulta.
O tempo passou e ela manteve intacto o gosto da despedida,
como se eu pudesse voltar e acender de novo aquele incenso que ficou pela
metade preso no disco na parede, como se pudesse novamente disfarçar que aquele
cheiro de cigarro impregnado na roupa era só mais um cheiro. Doía, bem no
fundo, repensar nas esperanças que se perderam no meio do ciclo suntuoso
vivencial realístico. A cor que não era tão presente aparecia às vezes
anualmente para dizer porque sua simbologia era tão importante e as coisas mais
comuns tornaram-se hábitos. Esse exemplar de Morangos Mofados, aos 14 anos
jurei que nunca me separaria dele. Está autografado, fazia eu me sentir mais
viva. Uma caixa debaixo da cama com coisas de amores passados, o gosto doce da
ingenuidade.
“Te escrevo esse poema
de fim de tarde para dizer o que minha mente caduca escreve nas paredes.”
Já fomos tão interessantes quando éramos menos sórdidos. O
toca-discos continuava no lugar, era pesado demais para levar por correio.
Coloco pra tocar meu disco preferido da época, Patti Smith grita e eu procuro o
gato que se localiza, ainda, entre os cobertores que nunca foram dobrados. Esse
cheiro de morte gela os dedos das mãos, apesar do frio.
Coloco algumas coisas em caixas, fecho-as. Quero guarda-las
para sempre. As outras eu deixo para alguém rir no futuro, pego o gato no
colo, olho do quintal os dois quartos vazios e a lágrima que quis cair guardo pra
mais tarde, quando estiverem alinhadas as razões com os pensamentos.
Acendo o primeiro cigarro dentro de casa, o último incenso
cai no chão e o cheiro de morte persegue.
Prometo nunca mais voltar,
os pés estão gastos e o coração palpita de cansaço.